_obras

_Emergir efêmero da memória (2023)
Instalação com três esculturas em argila crua, carvão e pedaços de madeiras queimadas

Internado em 27 de junho de 1934, Albino Braz foi um dos pacientes-artistas do Hospital Psiquiátrico do Juqueri. Muito reconhecido pelas suas habilidades em desenho, em seus trabalhos damos, por diversas vezes, de encontro com representações de bichos dotados de uma estranheza específica, seja pela maneira como pensa suas anatomias distorcidas, ou pela forma como as vezes Albino mescla em um mesmo animal, características de seres diferentes que faz com que muitas vezes o observador se detenha e se indague em busca de uma identidade que unifique tais seres. Pássaros com pescoços alongados como os de serpentes, insetos com bicos e do tamanho gatos, ratos com garras de tigre, são exemplos de formatações de bichos que podemos encontrar em suas obras.

No diagnóstico que recebe do doutor Osório Cesar, médico psiquiatra que trabalhou por mais de 4 décadas no hospital, me chama atenção um trecho específico: “…esquizofrenia, excitação ligeira, ideação rápida, associação de ideias por assonância, concordância e semelhança.”. Talvez resida aí uma pista da forma como Albino pensava as concepções dos seres representados, já que dentre as características da esquizofrenia uma delas a perda de contato com distorção da realidade, esse dado somando a questão da associação por assonância, que nada mais é que uma figura de linguagem que consiste em repetir sons de vogais em um verso ou em uma frase, recurso esse muito empregado por poesias e prosas. Além de ter como acréscimo a maneira como associava as informações por concordância ou semelhança. Me pergunto como seria se essa mesma descrição não estive em um prontuário médico, e sim em um catálogo que trata de discutir as obras de um artista? Pois ao meu ver, poderiam ser maneiras de raciocinar muito próximas de pensamentos criativos de diversos artistas que nunca estiveram em um hospital psiquiátrico.

Talvez as mesmas características que o tornaram inapto a viver em sociedade, seriam as características que o torna muito apto a ser artista. 

Na obra Emergir efêmero da memória (2023), o artista Renato Almeida se propõe a fazer uma reinterpretação da obra “Animais” (sem data) de Albino Braz, um desenho em grafite sobre papel. Nelas podemos ver três seres diferentes, que parecem mesclar características de cavalos, com cachorros, tigres ou lobos, em planos e escalas diferentes. Além da própria mescla dessas características diferentes, chamam a atenção do artista duas questões, a primeira diz respeito a forma como esses animais parecem trocar olhares muitos agudos, ao mesmo tempo que parecem estar olhando para o observador da obra, até mesmo torcendo seus pescoços e posicionados suas cabeças de maneira anatomicamente desconfortáveis e até impossíveis na realidade, essa característica por si só já aproximou e prendeu a atenção do artista ao desenho. A segunda característica que chama atenção de Renato Almeida, é relacionada a questão da linguagem, mais especificamente ao desenho figurativo de forma bem direta e linear, as formas muito bem delimitadas, o gesto firme e bem marcado, mesclado ao fato das figuraras estarem soltas no espaço sem um fundo que as conectem. Foi essa segunda questão que o levou a pensar essas formas tridimensionalmente por meio da escultura.

Dessa forma, a obra Emergir efêmero da memória (2023), consiste em uma instalação no gramado em frente ao museu, onde três cabeças elaboradas em argila, que fazem menção aos seres presentes na obra de Albino, são posicionadas diretamente no chão sobre pedaços de carvão e madeira queimada. As cabeças emergem do chão, como se fosse uma tentativa de sobreviver a um soterramento que não é só físico, mas subjetivo e mnemônico. Uma maneira de se fazer presente e resgatar a memória dos que por ali passaram, mas também dos acontecimentos que fazem parte da história daquele território. A escolha pelo uso de carvão e pedaços de madeira queimada recolhidas nas próprias ruínas das construções do hospital psiquiátrico, fazem alusão ao incêndio ocorrido em 17 de dezembro de 2005 no prédio da administração central do Complexo Hospitalar do Juquery, conjunto arquitetônico projetado pelo arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo na virada do século XIX, e que foi Patrimônio Histórico reconhecido pelo Condephaat. Mais um acontecimento que infelizmente prejudica o processo de resgate de nossa memória sociocultural, considerando que essa edificação representa quase 120 anos de indiscutíveis valores históricos e arquitetônicos de nossa história.

Escultura realizada em argila crua, sem passar pelo processo de queima, está fadada as intemperes climáticas do espaço externo do museu, assumindo assim suas características de efemeridade, fazendo menção as maneiras como nossas memórias permanecem em nossa mente, ou como nossas memórias coletivas são tratadas ou resgatadas em nossa sociedade.